domingo, fevereiro 20, 2005

"Desculpe..."

"Siga sempre em frente", disse-me a senhora.
E eu segui.
Continuei expectante, naquela estrada tumultuosa, em que o verde da paisagem era a minha única e esquiva companhia.
O cheiro da Primavera invadia-me os sentidos ao semear na minha vontade a semente de um desejo que ainda se viria a manifestar, uns dias mais tarde.
Mas enquanto não cumprimentava o meu destino, aquele que me esperava, sentia-me como se de nada se fizesse a vida. Mesmo que, pelo contrário, tudo aquilo que queria estivesse ao alcance de um pedal e alguns litros de uma substância que me era familiar, mas que desconhecia por completo.
A resposta às minhas dúvidas eram as próprias questões que me colocava. Porque delas fazia parte a sede de conhecimento. Elas alimentavam a esperança que mantinha de atingir a compreensão, pelas formas mais abstractas, mas ainda assim encriptadas na força da vontade.
Segui em frente, de facto.
Encontrei a dúvida, mantive a ignorância, mas descobri a existência.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Podias ser TU

Apanhaste essa flor que não era tua e nem sequer lhe pediste licença.
Devias ter vergonha do teu egoísmo.
Ela já estava aí antes de te teres lembrado da sua existência. E mesmo assim ignoraste tudo o que ela representava e decidiste por ti próprio.
A flor, que nada temia, passou a ter que conviver com a culpa da sua própria beleza. Passou a ter que arrastar à sua volta a dimensão da cegueira invertebrada de quem a colheu. Perdeu-se a si mesma no momento em que a encontraram a ela.
E agora segue algures por aí um destino que não é seu.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

De mim

Eu posso ver-te se quiser.
Basta abrir a cortina com a força da minha vontade.
Tudo o que está do outro lado é acessível. Se for isso o que procuro.
Nada que não queira se faz. Mesmo que por outro lado o destino comande.
Mas se por ti aqui estiver, nada é impossível. Porque te revejo nas mais pequenas coisas. Porque estou contigo sem nada temer.
O sentido faz-se daquilo que definimos como credível. Daquilo que escolhemos para nós.
Pelo menos a isso temos direito. Dentro de nós, existe algo a que nunca ninguém tem acesso. Mas esse canto, dou-te eu a ti.

domingo, fevereiro 13, 2005

Foi por ali

- "Calhordas!", diz o senhor sentado no banco. Está ali desde que o ponteiro maior do relógio deu quatro voltas.
O rosto sereno, digno de si. As mãos imóveis, assentes no colo. As pernas dormentes, carentes de ritmo. O entusiasmo de uma infância feliz, em que o berlinde era o melhor amigo dos seus dedos e a imaginação sua incansável companheira.
Aos anos que deixara de ser uma criança, e no entanto sentia o apelo da juventude no seu coração. Deixara-se de brincadeiras muito cedo, quando solicitação materna se impôs.
O dinheiro não abundava e havia muito trabalho a precisar de atenção. Seguiu os passos que lhe eram destinados e caminhou sem hesitações.
Lamentos são para os tolos, que cegos querem ser.
- "Calhordas!", repete outra vez, reconfortado pelo jardim que o rodeia, numa tarde em que a primavera resolveu acordar do descanso em que adormecera.
Recorda o momento em que lhe foi apresentada a despedida, ao presenciar a partida do seu pai, rumo a melhores dias, por necessidade, claro está, que a vida não é fácil, muito menos quando não se faz por ela. Fora a convite de entidades desconhecidas, mas prometedoras.
Fora e não voltara mais. Partira com um único sorriso no rosto, provocado pela esperança de vir a proporcionar melhores ocasiões. Uma única palavra dirigiu ao seu pequeno filho.
- "Calhordas!", dizem os dois.

Contigo

De passagem pela tua rua, ouvi o sino a tocar.
Não compreendi aquele som, tão vago e penetrante.
Julguei que fosses tu a chamar-me, como de costume. Sim, podias ter sido tu, naquela manhã. Ainda me voltei, crente na tua presença. Mas acabei por não te ver além da memória.
Por todos te foste, pobre de ti, sempre rica em chama e fogo interior. Que em ti reluzirá o brilho a que me habituaste. Que de ti guardei a força dos teus olhos grandes.
Que de mim, vento esquivo, segue um resto de ti.

Conta com isso

Se eu lá fosse, talvez ela olhasse para mim.

Se eu lhe dissesse o meu nome, poderia vê-la melhor.

Se eu pedisse muito, ela ajudar-me-ia.

Se eu chegasse devagarinho, não a assustaria.

Se eu contasse um segredo, ficariamos amigos.

Se eu quiser, posso lá ir.

Se eu for, logo verei.

Se eu não for, aqui ficarei.

Sozinho, sem ti.