Farto-me de puxar este lençol. Todas as noites, prendo-o estrategicamente debaixo do colchão, de forma a que me pareça que está sempre a fugir. Dessa maneira, recordo-me de ti, que me fazias companhia, com essa tua vontade egoísta de fazer da minha cama o teu palácio, onde sentias o dominio perfeito. Sempre soubeste que eu era teu. Sempre te pertenci. Desde que me mostraste esse teu lado esquivo e sóbrio, diferente de tudo, mas igual àquilo que queria para mim. Assim que me deito, sinto o teu calor. O saco de água quente substitui-te na perfeição. O cheiro ainda é o mesmo, ainda me perfumo em ti, ainda te vejo a entrar pela porta e a sorrir com um aceno de culpa, por teres a certeza daquilo que te esperava, que nos esperava. Um dia destes, vou-te visitar. Levo uma flor. Canto-te uma canção. Que me faça lembrar a tua rebeldia, que me obrigue a esquecer a ousadia, que me ajude a renascer nesse dia.
Ele sabe que cada passo na areia é uma marca sua que ali deixa. Está a caminhar junto ao mar, numa tarde de sol encantadora. Quando olha para trás, apercebe-se do rasto que as suas pegadas escreveram. Ficaram ali, suspensas no tempo, reveladoras do caminho que acabara de percorrer. No entanto, logo o mar sobe e se junta a essa recordação. Envolve-a e leva-a consigo, para um sitio seguro. Não a apaga, apenas a substitui por uma nova oportunidade. E ele continua. Passo a passo. De frente para a vida.
A Mariana queria um livro. Sempre desejara saber ler e perceber o que cada uma das letrinhas poderia significar. Ficava muito intrigada quando via alguém agarrado a um texto ou a viajar sentado, bastando para isso observar as expressões de regozijo que a cara dessa pessoa exibia quando se entregava ao prazer de um bom livro. Quando alguém lhe perguntava o que queria ser quando fosse grande, a Mariana respondia de um só folego "Quero ser leitora!". A Mariana tinha 78 anos. Sempre bem vestido, o João decidiu que aquele era o dia em que ia bater à porta. Ele sabia que as hipóteses de ser bem sucedido eram escassas. No entanto, não quis deixar de desafiar o destino e impor aquilo que a sua vontade lhe sussurava ao ouvido "Tenta, pode ser que ela abra. E abrir a porta é também abrir o coração". Respirou fundo, hesitou dois segundos, lembrou-se do que a mãe lhe dizia todos os dias em pequeno antes de sair de casa "Filho, olha que a vida é curtinha, não te percas naquilo que não vale a pena". E não se perdeu. Bateu à porta duas vezes, à terceira ela abriu e deixou-o entrar. "Rafael!", diziam as gémeas. "Rafael, não comas porcarias!" O Rafael tinha quatro patas, mas elas tratavam-no como um irmão mais novo. Onde quer que fossem, levavam o cão com elas. Eram inseparáveis. Um dia, quando o verão dizia que o calor era a maior de todas as imposições, a mãe das meninas decidiu que era altura de levar o Rafael ao cabeleiro. Tinha pelo de rei, uma juba de leão enternecedora, mas muito pouco conveniente em épocas quentes. Elas ficaram por casa, ele seguiu com a mãe. Horas depois, a mãe regressou. Trazia um animal que não reconheciam. Era um Rafael diferente, menos bonito, algo atrofiado e vulnerável. As meninas não se deixaram intimidar, abraçaram-no imediatamente, como de costume. Naturalmente...
O tempo não pára. Imagina-te num rio. Corrente forte. Estás num barco, que é teu, estão lá os remos, tens comida suficiente até à próxima oportunidade. A viagem depende de ti. És tu que decides o destino. O cenário pode mudar. Cada margem é uma história que podes escrever. Assim é a vida. Momentos. Decisões. Ela segue, não abranda. Mas tu podes sempre optar. Tu estás mesmo ali, e tudo o que te rodeia são chaves para o percurso que queres seguir. É como se de repente tudo fizesse sentido. Deixa-te ir, mas não deixes que te passe ao lado.